Antes de começar a leitura, faça um pequeno experimento comigo: pense em alguém que você conhece que parece fazer “tudo certo” em termos de saúde. Aquela pessoa que corre 5km todo dia, come salada no almoço, nunca fuma, raramente bebe… Disposta a ter uma vida longeva.
Agora pense em alguém completamente oposto. Talvez um avô ou tio que fuma desde os 15 anos, bebe sua cervejinha diária, come torresmo no fim de semana e, ainda assim, está aí firme e forte aos 80 e tantos anos.
Curioso, não? Essa contradição. E se eu te disser que a ciência finalmente está começando a entender esse paradoxo?
A matemática que seu cardiologista não te conta
Vamos começar com um fato que vai te surpreender: cerca de 50% das pessoas que sofrem um ataque cardíaco têm níveis normais de colesterol.
Sim, você leu certo. METADE das pessoas que têm um infarto apresentavam exames de colesterol dentro da faixa considerada “segura” (abaixo de 200 mg/dL de colesterol total).
Isso é como descobrir que metade dos acidentes de avião acontece quando o céu está limpo e os instrumentos indicam que está tudo normal. Algo claramente não faz sentido nessa história, concorda?
E aqui está o primeiro fato: se o colesterol fosse o único vilão das doenças cardíacas, pessoas com colesterol normal não deveriam ter ataques cardíacos em números tão altos.
O estranho caso do “Paradoxo Francês”
Você já ouviu falar do Paradoxo Francês?
É aquela história de que os franceses comem queijos gordurosos, foie gras, croissants amanteigados, bebem vinho… e têm taxas de doenças cardíacas significativamente menores que os americanos.
Por anos, cientistas quebraram a cabeça tentando explicar isso. Alguns chegaram a sugerir que era o vinho tinto (o famoso resveratrol, um composto antioxidante encontrado na casca da uva). Outros apostaram no azeite de oliva. Alguns até brincaram que era o “je ne sais quoi” (expressão francesa que significa “não sei o quê”) da atitude francesa perante a vida.
Mas e se o paradoxo não fosse um paradoxo? E se estivéssemos olhando para o mapa errado o tempo todo?
É como aquela piada do bêbado que procura as chaves debaixo do poste de luz, não porque as perdeu ali, mas porque é o único lugar iluminado.
Por décadas, estivemos procurando respostas para doenças cardíacas “debaixo do poste” do colesterol, quando talvez a resposta estivesse em outro lugar.

A descoberta acidental que está mudando tudo
Em 2019, um grupo de pesquisadores da Universidade de San Diego estava estudando algo completamente diferente: a relação entre microbioma intestinal (o conjunto de trilhões de bactérias que vivem no nosso intestino) e doenças autoimunes.
Como parte do protocolo padrão, eles coletaram dados sobre diversos marcadores sanguíneos dos participantes. Foi quando notaram algo estranho.
Os participantes com níveis mais altos de uma substância chamada TMAO (N-óxido de trimetilamina, um composto produzido quando certas bactérias intestinais processam nutrientes específicos da nossa dieta) tinham 3,4 vezes mais chances de desenvolver problemas cardiovasculares, independentemente dos níveis de colesterol.
“Achamos que era um erro”, conta a Dra. Helena Marquez, uma das pesquisadoras. “Refizemos os testes três vezes antes de acreditar nos resultados.”
E aqui está nosso segundo fato: existem fatores de risco para doenças cardíacas que não aparecem nos exames convencionais que seu médico pede.
O que seu intestino tem a ver com seu coração (spoiler: tudo)
Agora vem a parte realmente fascinante. De onde vem esse tal de TMAO que está tão fortemente ligado a problemas cardíacos?
Prepare-se para a surpresa: ele é produzido por bactérias no seu intestino quando você consome certos alimentos.
Isso mesmo. As trilhões de bactérias que vivem no seu intestino podem estar determinando se você vai ter um ataque cardíaco ou não.
É tipo descobrir que existe um jogador no seu time que, dependendo do almoço que você lhe der, ele vai tomar um cartão vermelho de propósito.
Estudos recentes mostram que pessoas com certos tipos de bactérias intestinais têm maior propensão a converter componentes da carne vermelha (especialmente carnes processadas como salsicha, bacon e presunto), ovos e alguns laticínios em TMAO. E quanto mais TMAO no sangue, maior o risco de formação de placas nas artérias.

Por que seu avô fumante ainda está vivo (e não é sorte)
Lembra daquele seu tio ou avô que fuma há 60 anos e continua por aí, desafiando todas as estatísticas?
A ciência finalmente tem uma possível explicação: ele pode ter um microbioma intestinal que simplesmente não produz muito TMAO, mesmo com hábitos não tão saudáveis.
É como aquelas pessoas que podem comer um pote inteiro de sorvete antes de dormir e acordar com o mesmo peso. Injusto? Talvez. Mas é a realidade biológica.
Um estudo com centenários (pessoas com mais de 100 anos) mostrou que muitos deles têm perfis de microbioma intestinal excepcionalmente diversos e resilientes, mesmo quando seus hábitos alimentares não são exemplares.
O experimento de 7 dias que está deixando cardiologistas perplexos
Em 2022, pesquisadores da Universidade de Copenhagen fizeram um experimento simples, mas revelador.
Eles pegaram 48 voluntários com alto risco cardiovascular e dividiram em dois grupos:
- Grupo 1: Seguiu uma dieta tradicional “cardioprotetora” baixa em gorduras (com alimentos como peito de frango grelhado, claras de ovo, leite desnatado)
- Grupo 2: Seguiu uma dieta focada em saúde intestinal, rica em fibras fermentáveis (com alimentos como cebola, alho, banana verde, grãos integrais, leguminosas)
Após apenas 7 dias, o Grupo 2 apresentou uma redução de 24% nos níveis de TMAO, enquanto o Grupo 1 não mostrou alterações significativas.
“Foi como se tivéssemos encontrado um atalho que ninguém estava vendo”, explica o Dr. Lars Hendriksen, principal autor do estudo.
Isso quer dizer que: modificar seu microbioma intestinal pode trazer benefícios cardiovasculares mais rápidos do que abordagens tradicionais focadas apenas em colesterol.

Os 5 alimentos que são “kriptonita” para seu coração
Aqui está a parte que vai virar de cabeça para baixo tudo o que você pensava saber sobre alimentação saudável para o coração.
Os alimentos que mais contribuem para a produção de TMAO não são necessariamente os mais gordurosos, mas sim aqueles que contêm altos níveis de colina e L-carnitina (nutrientes que, embora importantes para o organismo, podem ser convertidos em TMAO por certas bactérias intestinais):
- Carne vermelha processada – Não é tanto pela gordura, mas pelos compostos que certas bactérias adoram converter em TMAO (exemplos: salsicha, bacon, presunto, mortadela, salame)
- Gema de ovo em EXCESSO – Rica em colina, que é um precursor do TMAO
- Suplementos de L-carnitina – Ironicamente, muitos suplementos “para o coração” podem estar fazendo o oposto do desejado (exemplos: suplementos para ganho muscular, queimadores de gordura e alguns energéticos)
- Leite integral em grandes quantidades – Não pelo que ele é, mas pelo que ele faz com seu microbioma (especialmente quando consumido diariamente em grandes volumes, como mais de 500ml por dia)
- Alimentos ultraprocessados – Não diretamente, mas porque destroem a diversidade do seu microbioma (exemplos: salgadinhos industrializados, refrigerantes, macarrão instantâneo, nuggets)
E aqui está um argumento incontestável: alguns alimentos considerados “saudáveis” podem ser problemáticos para certas pessoas, dependendo da composição do seu microbioma intestinal.

O teste que seu médico provavelmente nunca pediu (mas deveria)
Se você já fez um check-up completo, provavelmente seu médico pediu:
- Colesterol total
- HDL e LDL (as chamadas “bom” e “mau” colesterol)
- Triglicerídeos
- Glicemia
- Talvez até um teste de esforço
Mas aposto que ele nunca pediu um teste de TMAO ou uma análise do seu microbioma intestinal.
É como se você estivesse fazendo um check-up completo do seu carro, mas ninguém nunca olhasse para o sistema de freios. Não importa quão bem o motor está funcionando se os freios falharem, certo?
Felizmente, isso está começando a mudar. Laboratórios mais avançados já oferecem testes de TMAO (Exame de N-óxido de trimetilamina), e análises de microbioma estão se tornando mais acessíveis.
Como “hackear” seu microbioma para um coração mais saudável
Agora vem a parte prática: o que você pode fazer com toda essa informação?
Diferentemente do seu DNA, que é praticamente imutável, seu microbioma intestinal pode ser significativamente alterado em questão de semanas. Você tem a chance de trocar o motor do seu carro por um modelo mais eficiente.
Aqui estão cinco estratégias baseadas nas pesquisas mais recentes:
- Diversifique suas fibras – Diferentes bactérias benéficas se alimentam de diferentes tipos de fibras. Tente consumir pelo menos 30 tipos diferentes de vegetais, grãos e legumes ao longo de uma semana (exemplos: alho, cebola, alho-poró, aspargos, banana verde, aveia, cevada, lentilha, grão-de-bico, feijão).
- Inclua alimentos fermentados – Kimchi (conserva de repolho fermentado coreano), kefir (bebida fermentada semelhante ao iogurte), kombucha (chá fermentado), iogurte natural… Todos contêm probióticos vivos (bactérias benéficas) que podem ajudar a diversificar seu microbioma.
- Experimente o jejum intermitente – Estudos mostram que períodos de jejum de 12-16 horas (por exemplo, jantar às 19h e só voltar a comer às 7h do dia seguinte) podem promover o crescimento de bactérias benéficas que reduzem a inflamação vascular.
- Reduza alimentos precursores de TMAO – Não é preciso virar vegetariano, mas considere diminuir o consumo de carnes vermelhas processadas e gemas de ovo em excesso.
- Considere prebióticos específicos – Inulina (fibra encontrada na chicória, alcachofra e alho), FOS (fruto-oligossacarídeos, encontrados em bananas, cebolas e aspargos) e GOS (galacto-oligossacarídeos, encontrados em leguminosas) são fibras especiais que alimentam seletivamente bactérias benéficas.
Modificar seu microbioma pode ser uma das estratégias mais eficazes para proteger seu coração a longo prazo.
O experimento de 30 dias que você pode fazer em casa
Aqui vai uma proposta: faça um experimento de 30 dias focado na saúde do seu microbioma e veja o que acontece.
Não estou sugerindo nada radical. Apenas algumas modificações simples:
- Adicione uma porção diária de alimentos fermentados (como uma colher de sopa de kimchi, um copo pequeno de kefir ou um potinho de iogurte natural)
- Aumente sua ingestão de fibras para pelo menos 30g por dia
- Experimente reduzir carnes processadas (como salsicha, bacon, presunto)
- Inclua mais vegetais coloridos em cada refeição (tente ter pelo menos 3 cores diferentes no prato)
- Considere um período diário de 12 horas sem comer (por exemplo, jantar às 19h e café da manhã às 7h)
Se possível, faça exames básicos antes e depois: pressão arterial, PCR (proteína C-reativa, um marcador de inflamação no sangue) e, se disponível, TMAO.
“A maioria dos meus pacientes nota diferenças significativas em marcadores inflamatórios em apenas um mês”, afirma a Dra. Marquez. “E muitos relatam melhorias subjetivas em energia, digestão e até clareza mental.”

Conclusão
Depois de tudo o que vimos, chegamos à nossa conclusão: A saúde do seu coração não é determinada apenas pelo que você come, mas principalmente pelo que suas bactérias intestinais fazem com o que você come.
Esta mudança de perspectiva abre um mundo de possibilidades. Significa que mesmo pessoas com predisposição genética para doenças cardíacas podem ter novas esperanças através da modulação do seu microbioma.
É como descobrir que você pode reprogramar o software do seu corpo, mesmo que o hardware tenha algumas limitações de fábrica.
E talvez isso explique por que seu avô fumante de 90 anos continua por aí, desafiando todas as estatísticas, enquanto algumas pessoas aparentemente saudáveis enfrentam problemas cardíacos precoces.
A próxima vez que você ouvir alguém dizer “é tudo genética” ou “é só sorte”, você pode sorrir sabendo que a história é muito mais complexa – e muito mais fascinante – do que isso.
E você, já parou para pensar no que suas trilhões de bactérias intestinais estão fazendo pelo seu coração neste exato momento?
Nota: Este artigo é baseado em pesquisas científicas recentes, mas não substitui orientações médicas profissionais. Consulte sempre seu médico antes de fazer mudanças significativas na sua dieta ou estilo de vida, especialmente se você tem condições cardíacas pré-existentes.
Fontes:
- Journal of the American Heart Association. “Intestinal Microbiota-Dependent Trimethylamine N-oxide and Cardiovascular Outcomes.” 2020.
- Nature Medicine. “The gut microbiome contributes to a substantial proportion of the variation in blood lipids.” 2021.
- New England Journal of Medicine. “Microbiome-Directed Food Modification for Cardiovascular Risk Reduction.” 2022.
- Cell Metabolism. “Microbiome connections with host metabolism and habitual diet from 1,098 deeply phenotyped individuals.” 2021.
- Science Translational Medicine. “Integration of metabolomics, genomics, and immune phenotypes reveals the causal roles of metabolites in disease.” 2019.